O quê: Dois livros de contos exclusivos e nunca publicados
Onde: Na minha estante, e pra sempre no meu coração
Origem: Presentes dos meus amigos da faculdade
Os quatro anos que vivi na Escola de Comunicação da UFRJ, de 1997 a 2001, foram anos especiais. As amizades que fiz lá, nunca fiz em lugar nenhum. Ainda tenho um carinho muito grande por eles, apesar da distância e do tempo. Tenho o maior orgulho de dizer que minha turma era muito criativa. Era quando a gente achava que podia fazer de tudo, a gente tinha aquela vontade de fazer e acontecer, de criar, de ser, de brilhar.
Uma das tradições da minha patota era fazer presentes de aniversário personalizados. Não lembro quem foi o primeiro de nós que ganhou presente especial. Lembro que fizemos filme, CD de música que nós mesmos cantamos e tocamos, história em quadrinho (talvez?). A gente fazia o presente de acordo com os interesses do aniversariante. Pra mim, eles fizeram um livro: O colar de contas. Cada um escreveu um conto, às vezes dois ou três deles escreveram juntos. Um deles, o nosso cartunista Romeiro, ilustrou as páginas. Encadernaram e tudo mais. A produção era completa, com ISBN e dedicatória. Nem a ficha de catalogação ficou de fora.
O prólogo abaixo, sem assinatura. Mas que eu tenho quase certeza que foi obra do Werneck.
O velho colar de contas
Faça de conta que este é o último dia de sua vida e que você está abrindo aquelas velhas caixas que guardou dia após dia com suas memórias. São poucas caixas, é verdade. Com a idade, a memória vai ficando cada vez mais seletiva e conveniente, ou seja, curta. As lembranças, com o tempo, vão precisando das bengalas, dos remédios e, sobretudo, dos óculos. Para vê-las, é preciso olhar cada vez mais de perto, afastando às vezes para conseguir foco.
Mas faça de conta, apesar das costas doerem (só de lembrar). Você está abrindo todas as caixas empoeiradas e catando os pedaços que, juntos, compõem a sua vida. Em cada caixa, claro, você vai encontrar lembranças diferentes, histórias desiguais que, de tanto acontecerem com você, poderiam ter acontecido com qualquer pessoa.
E se forem as histórias de amor, o que você fará? Mesmo que a sua vida não tenha tido tantas, ou que mesmo só tenha tido uma, quer essa uma tenha sido uma “só”, quer tenha sido “a” uma, ela se multiplica em várias. As histórias de amor de nossa vida são como um colar, formado dessas lembranças, dessas memórias. São histórias alegres, histórias tristes, de tantas pessoas que atravessam nossa pessoa ao longo do tempo!
Você pode se lembrar da primeira paixão, do primeiro amor, de quando descobriu a diferença entre um e outro, do primeiro beijo (e de como achou que ele seria o último e de como achou que nunca fosse esquecê-lo até ter que se lembrar dele hoje). Você pode se lembrar mesmo de cada uma das contas desse colar, desse velho colar, dessa fileira de histórias de amor que formaram sua vida (assim como qualquer outra).
Mas de repente você se deslumbra, ergue o colar um pouco mais para vê-lo de perto, balança-o e aperta-o como que para ver se dele salta mais alguma história, e o tênue fio que une as contas se parte e as peças caem no chão.
Caem e rolam, espalham-se pelo chão, como que fugindo do ponto em que caíram todas juntas. Espalham-se diante de seus olhos arregalados, amedrontados pela impressão de que as contas vão para nunca mais voltar. E de súbito você se levanta para pegá-las e vê que uma rolou para baixo da cama, outra que está perto do seu pé você vai chutar para longe sem querer, outra já foi tanto que já chega a sair pela porta do quarto. Como juntar tudo isso novamente? Como trazer as contas de volta?
Tomada pelo medo de perder as contas, você cai em prantos. No chão, no meio do choro, seus olhos são atraídos por uma luz, que vem de debaixo de uma das caixas. Você pensa que é uma das contas, mas como ela teria deslizado para aquela direção? Com a mão entre a caixa e o chão, você consegue alcançar o objeto luminoso. Para a sua surpresa, é uma conta. Mas de outro colar. Olhando mais de perto, é uma conta de pérola. A lembrança vem logo. É de um colar que o seu pai lhe deu, nos seus quinze anos. Você o usuou por muito tempo, porém, um dia, ele se partiu.
Sentada no chão, com os olhos ainda vermelhos, as lembranças vêm todas de uma vez. Os quinze, dezesseis, dezessete, dezoito anos. O amor, o ciúme, a insegurança, a felicidade, os sentimentos experimentados nessas ocasiões lhe invadem, e é como se os vivesse novamente. O momento é revelador. Você não está com todas as contas na mão, entretanto, pôde lembrar, o mais importante, sentir tudo. Tudo. Da dor à alegria.
As contas do outro colar ainda estão espalhadas, longe uma das outras. Você se levanta. Abra a caixa onde encontrou o colar. Guarda as contas que ficaram presas no fio com cuidado. Sorri, já não está com medo. Sabe que não precisa das contas para resgatar suas memórias. As emoções despertadas pelas contas estão todas dentro de ti, são parte de você. Em alguns momentos, esquecemos de recuperá-las, mas elas estão lá. Guardadas.
Os colares são apenas tênues organizações, conexões que fizemos para armazenar as lembranças. Existem contas que são únicas, que estão dispersas pelo chão, nas entranhas do sofá, no fundo da gaveta, escondida embaixo da tampa da caixinha de música. Em toda a parte. Pérola, ouro, plástica, branca, azul, prata, suja, velha, nova. Cada conta é uma história, mas fomos nós que vivemos a história, nós preenchemos as contas. Logo, antes de dependermos delas para nos lembrarmos, elas dependem de nós para existir.
Os contos de ficção sempre têm um fundo filosófico, que era tão característico daquela nossa fase. Aquela fase das reflexões, da busca de identidade. Meus amigos escreviam – ainda escrevem – tão bem.
Depois que nos formamos, mantivemos contato. Quando eu estava grávida da Laura, eles me presentearam com outro livro, o Babador de contos, uma antologia infantil.
Uma vez uma turma se encontrou para aprender a contar histórias do dia-a-dia;
Uma vez um grupo de amigos deixou de lembrança histórias pelo caminho;
Uma vez uma história sobre um colar de contas traduziu a amizade;
Era uma vez uma menina que ganhou de presente um mundo de histórias.
É muito amor, né?
Que saudade daquela época! Que saudade do tempo em que a inspiração era companheira constante, que os sonhos eram mais dourados, que a criatividade não faltava. Como era bom pensar, sentir, criar. Esses livros são uns dos mais especiais da minha estante. Não há cópias, não há versão digital deles. São meus e meus somente. Objetos de um passado que fizeram me sentir tão querida. Presentes do coração, que dinheiro nenhum pode comprar.
Acho que tá na hora de outra coletânea, hein galera?
O que é o projeto 52 objetos?
Em muitos anos no futuro alguém encontra uma caixa cheia de coisas que você possuiu e tenta descobrir que tipo de pessoa você era. Talvez essa caixa tenha fotografias, livros, documentos pessoais, roupas, talheres, bilhetes de shows ou até um pacote de chiclete. O que esses objetos diriam sobre você? Eles mostrariam um retrato fiel da sua vida? Qual história eles diriam?
A ideia original veio daqui.